quinta-feira, 9 de junho de 2016

POR UM FEMINISMO TRANS: AS LUTAS DEVEM ESTAR JUNTAS

























Não pretendo com este texto causar polêmicas, o ambiente virtual está tomado de discussões entre feministas interseccionais, transfeministas e feministas radicais que desconsideram a possibilidade de uma mulher trans ser, de fato, uma mulher. Pode ser que este texto ateie mais fogo à situação… Nunca se sabe. Mas o fato  é que precisamos pensar as interseccionalidades de nossas lutas e as vivências de feminilidade. Tanto das mulheres cisgênero quanto das mulheres trans, para que possamos voltar a ter como foco de nossas lutas o desmantelamento do patriarcado, a proteção dos corpos sexuados e subalternizados de mulheres trans, mulheres cis e travestis. Nesse feminismo de internet vemos alguns argumentos que tentam negar a mulheridade das mulheres trans – falarei deles mais a frente. Quero, antes, refletir sobre como nossos arcabouços teóricos e nossas estratégias de saber se encontram, se alinham, e se reforçam.

PEQUENA HISTÓRIA DO CORPO DA MULHER OU DO CORPO FEMININO

Durante anos, até o século XIX, os corpos eram pensados a partir do paradigma do “isomorfismo corporal”. Não havia uma distinção entre homens e mulher através do “gênero” (termo de ordem social muito recente no vocabulário da academia, popular e da medicina). Como nos revela Berenice Bento e também Thomas Laqueur, entendia-se que o corpo da mulher “não existia”, ele era, à moda da filosofia platônica, um corpo masculino mal desenvolvido. As mulheres possuiriam um “pênis invaginado”, e como forma de “compensar” esta ” má formação”, elas deviam dar “luz” a homens completos. O isomorfismo pensa a mulher como um ser menos evoluído. Contudo, essa concepção corporal se modifica no século XIX, passando ao que conhecemos hoje como dimorfismo, ou seja, a noção de que os organismos humanos, possuem apenas duas formas “normais”: a com pênis e a com vagina; a “masculina” e a “feminina”. Esse dimorfismo se inaugura, principalmente, através de processos descritivos positivistas, que visavam classificar com base nos dados biológicos, o que é ser homem e o que é ser mulher. Com isso atribuiu-se aos corpos, em um complexo sistema de discursos médicos, religiosos e sociais, um papel para o corpo da mulher. A partir de agora chamarei este complexo sistema de discursos de dispositivo da corporalidade.
O dispositivo da corporalidade, notadamente positivista, determina uma geografia do corpo da mulher e uma geografia do sexo da mulher. Então, a vagina serviria tão somente de porta de entrada para o pênis e de porta de saída para o novo ser gerado no útero. Assim, ao longo do século XX, se consolidaram como verdades científicas as noções de que as mulheres seriam menos inteligentes, de que teriam uma “natureza mais doce” e de que teriam, por natureza, cuidar do lar. No Brasil, verificamos estes dispositivos em ação quando vemos mulheres sendo internadas, no início do século XX,  simplesmente por não cumprirem seu papel de mulher, em manicômios, como nos relata a historiadora da Unicamp, Maria Clementina, quando nos conta sobre o diagnóstico de Camille Claudel – escritora e escultora – internada no Hospital Psiquiátrico de Montdevergues, citada por Clementina, em seu artigo sobre o Manicômio do Juquery,  por se revoltar contra a sua suposta natureza:
Revolta da Natureza: Camille abdicara do casamento e da maternidade, do conforto burguês e do recato feminino, para viver um papel diferente do que lhe estava destinado: em 1906 começaram a se manifestar os comportamentos que a levariam ao hospício: as fugas, o isolamento crescente tanto quanto, paradoxal e simbolicamente, a destruição de suas próprias obras. Aos 49 anos, pobre, sozinha e ressentida, Camille foi internada por sua família, com um quadro que diziam ser de depressão e delírio persecutório, ‘Censuraram-me (oh, crime espantoso) por haver vivido completamente sozinha’ – ironiza a própria Camille em carta escrita no asilo- “por passar minhas vidas com os gatos, por ter mania de perseguição”.  ( CUNHA, 1989; Loucura, Gênero Feminino: As mulheres no Juquery no início do século xx; pg. 123,  Revista Brasileira de História).

Camille_aos_20_anos
Camille Claudell, aos 20 anos de idade.

É pensando em exemplos como o de Camille Claudel, e de tantas outras mulheres internadas em manicômios por não cumprirem a sua função natural, que o gênero começou a ser percebido como uma rede de captura dos sujeitos e de sentenciamento a um destino generificado. A transgressão a essa sentença de gênero resulta em punições, seja pelas instituições médico psiquiátricas, seja pela violência doméstica, seja pelo estupro corretivo. O dispositivo da sexualidade, em termos foucaultianos, exige do sujeito uma série de correspodências: vagina-maternidade-submissão-afetividade-heterossexualidade; e pênis-paternidade-dominação-racionalidade-heterossexualidade.
A primeira onda do feminismo, se assim podemos chamar, tinha como eixo central de luta os direitos civis e políticos da mulher. Implicitamente nesta luta, percebemos que a negação histórica destes direitos tem relação com a própria compreensão que as pessoas da época tinham do que significava ser mulher. A mulher era entendida como um “não-ser”, que se estendida para a comprenssão de que não eram sujeitos políticos. Na teoria política de Aristóteles, que orientou o mundo por muito tempo, encontramos o que era a mulher, “zoé”, era vida destituída de cidadania, de humanidade. Zoé, para aristóteles, eram o escravo, a mulher e os animais. Todos aqueles a quem competia apenas o espaço privado da vida, o “óikos”,  e não a “pólis”, a vida e o espaço público do cidadão. Então, a primeira onda do feminismo, com destaque para Nísia Floresta, visava não apenas conquistar os direitos civis e políticos das mulheres, mas que elas alçassem a condição de sujeito. Entretanto, essa primeira onda feminista, ainda tinha seus essencialismos quanto ao “ser mulher”. Vale também mencionar que se tratava, nessa fase inicial, de um movimento formado, principalmente, por mulheres brancas e de classe média, afinal, as operárias e as negras, estavam em outros espaços, afastadas do diálogo.
A segunda onda ainda traz seus essencialismos, mas a identidade da “mulher” passa a ser socialmente pensada, a questão implícita na primeira onda, se explicita na segunda. É nesse momento, que surge o pensamento de Beauvoir, e que se começa a pensar o pessoal como político, ou seja, começa-se a pensar as relações homem-mulher como relações de poder em todos âmbitos, e não apenas no que tange aos direitos civis e políticos. A segunda onda é importantíssima para pensarmos o feminismo e a transexualidade, pois é nela que Simone de Beauvoirinicia a desnaturalização do gênero, ao dizer que “não se nasce mulher, chega-se a sê-lo”. Essa desnaturalização, só ganhará força novamente na terceira onda, com a publicação, por Judith Butler, de Gender Trouble (Problemas de Gêneros). Em Beuvoir, o “chegar a ser mulher” não é o indício pleno de que se pode construir a identidade feminina, mas de que, naquele período, só se poderia ser mulher, ou seja, ter a identidade social feminina normativa, em relação a um “homem”. Não era possível existir mulher sem homem e filhos. A mulher, era, então, antes do homem, um “outro negativo”, esvaziado de sentido e de utilidade. Já Butler, dá outra leitura a esta frase, e junto com teóricas como Monique WittigAngela DavisEve Kosofsky e Julia Kristev, dão início ao que podemos chamar de Terceira onda do feminismo.
Essa Terceira onda, devedora dos estudos culturais, dos estudos pós-coloniais e pós-estruturalistas nos trazem a questão da desnaturalização plena das identidades. Naturalização essa, que é construída por dispositivos de poder médico, legais e sociais. Seguindo o caminho de Michel Foucault, a terceira onda do feminismo, e mais marcadamente, a Teoria Queer, trarão a tona todo o esquema performático e a operação linguística, subjetiva e de ficção política que o conceito de “gênero” e de “sexualidade” engendram.
Judith Butler, em entrevista essa semana disse:
Quando foi publicado, Gender Trouble entrava em conflito com algumas formas dominantes da teoria feminista. Sempre que se falava de “mulheres”, assumia-se que elas se definiam pela relação com a reprodução ou o casamento, e o pressuposto era o de que ambos requeriam a heterossexualidade. Atualmente, temos de fato debates abertos sobre se “mulheres” se refere apenas a quem coube essa designação por nascimento ou se pode, e deve, incluir quem, em determinada altura da sua vida, assume essa designação. E temos um debate público muito maior sobre o casamento gay. O recente “sim” ao referendo na Irlanda foi histórico. E a reprodução pode, e já acontece, ser garantida através de meios técnicos, o que é verdade para heterossexuais, gays e lésbicas, e para pessoas solteiras de qualquer gênero. A questão central em Gender Trouble consistia em abrir categorias que há muito tempo estavam fechadas. Fazia parte de um movimento intelectual, cultural e político mais amplo, embora na altura eu não soubesse que seria a teoria queer
A crescente visibilidade que pessoas trans vem tendo, o aumento da produção acadêmica sobre o tema (no Brasil a primeira tese foi defendida em 2013 da professora Berenice Bento), os debates, as vezes tão desgastantes e pouco produtivos na internet, nos fazem pensar, na necessidade radical de que o feminismo seja também um transfeminismo. Do contrário, o “ser mulher”, se resume a um genital, e a alguns órgãos. Há anos o feminismo tem lutado contra essa instrumentalização do corpo da mulher.
Esquemática produzida pela Profa. Dra. Conceição Nogueira, da Universidade do Porto ( Em Portugal), sobre as ondas ( vagas) do feminismo.
Esquemática produzida pela Profa. Dra. Conceição Nogueira, da Universidade do Porto ( Em Portugal), sobre as ondas ( vagas) do feminismo.

E aqui eu faço a pergunta, que já foi feito há 25 anos pela Judith Butler no primeiro capítulo de “Problemas de Gênero”: Quem é o sujeito do feminismo? As mulher, obviamente. Mas existirá uma universidade e essencialidade no ser mulher? Todas as mulheres tem a mesma vivência, condições materiais e objetivas, percebem o mundo da mesma maneira? A resposta é não. E aí, eu respondo sobre a “socialização masculina” das mulheres trans. Se nós sempre nos percebemos como mulheres, se sempre fomos lidas como homens “traidores de gênero”, “homens de mentira”, e tínhamos que viver, por vezes escondidos, outras apenas na imaginação, a nossa feminilidade, por que essa não poderia ser considerada uma experiência do feminino? Não haverá, portanto, muitas formas de ser mulher?
É politicamente importante para o feminismo ampliar-se para o conceito de transfeminismo, pois lutamos contra os mesmos discursos que nos reduzem a genitais. Lutamos ainda, ambas, pelo direito de fazer o que quisermos com nosso corpo. Enquanto os úteros das mulheres cis, são posse do Estado, que as proibe de abortar, a genitália das mulheres trans é posse do Estado, que só nos permite mexer nelas depois de dezenas de laudos, permissão jurídica e um monte de processos com testemunhas e tudo o mais. Lutamos, ambas, contra biopolíticas que emanam do patriarcado, nos punem por não aceitarmos que ele nos façam homens, e as punem para mantê-las em suas rédeas.
Não quero causar mais brigas entre trans e feministas radicais com este texto. Quero apenas propor: não seria melhor lutarmos juntas?
Fonte: http://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2015/05/31/feminismo-e-questao-da-transexualidade-porque-devem-estar-juntas/

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