Responda rápido, leitor: ofender um homem negro chamando-o de "nego safado" é crime de quê? Se você respondeu crime de racismo, está certo, certíssimo, mas a maioria das autoridades policiais e judiciárias brasileiras não pensa assim. Convenientes tecnicalidades enquadram a ofensa como crime de injúria. A questão é das mais relevantes no enfrentamento do racismo no país.
Situemos o problema. A Constituição de 1988 estabelece que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Concretizando essa norma constitucional, foi editada a lei 7.716/89 definindo os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, cujo art. 20, na redação que lhe deu a lei 9.459/97 prescreve claramente ser crime de racismo praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor e etnia. Ocorre que o Código Penal Brasileiro, em seu art. 140, Par. 3º, regula o crime de injúria racial, que vem a ser atribuição de qualidade negativa à pessoa ofendida com elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. Em nosso exemplo, "nego safado" seria injúria racial e não, racismo. Para quem entende assim, o crime de racismo consistiria apenas nas ofensas amplas, a dizer, aquelas que importam em agressão à raça em seu âmbito geral e genérico, embora individualmente refletida em determinada pessoa. Disso seriam exemplos negar emprego por causa da raça, impedir o acesso de pessoas de cor negra a estabelecimentos comerciais, shopping centers, a elevadores em edifícios de apartamentos, entre outros. Em suma, na ofensa direta, a bonomia judicial brasileira vem resolvendo a questão como injúria. Isso tem importantes efeitos práticos no combate ao racismo, porque o crime de injúria somente admite ação penal mediante representação do ofendido, que pode inclusive perdoar a ofensa, enquanto que, no crime de racismo, o processo tem início por ação pública, de iniciativa do Ministério Público, além de ser, conforme a norma constitucional, inafiançável e imprescritível. A tutela da proteção contra a ofensa está, portanto, nitidamente prejudicada pela interpretação predominante. Caricaturando a situação, o empresário pode abrir as portas do trabalho ao homem negro, dizendo: "está admitido, nego safado", situação em que seguramente não será processado, porque o emprego falará mais alto do que a ofensa recebida.
A legislação brasileira tem sendas hipócritas como esta. Por isso, é preciso mudar o pensamento das autoridades policiais e judiciárias e escancarar o combate ao racismo, colocando na cadeia, sem direito a livrar-se solto, todo aquele que tiver e manifestar preconceitos de raça, cor, etnia, religião, afastando-se a aplicação do tipo de injúria, quando se tratar de ofensa direta e dirigida a pessoa determinada. É necessário entender que a lei, ao tipificar a prática de racismo como crime, quis incluir – e incluiu – no tipo todas as manifestações de racismo, porque somente assim se torna efetivo o comando constitucional. A questão é de dignidade humana e não, de técnica legal: o conceito de racismo não pode admitir gradação. A ofensa enraíza no ofendido, deprimentes, lamentáveis e sofridos sentimentos: desvaloriza os mais primitivos interesses de preservação da vida; tende a retrair e a diminuir os seus valores pessoais e intelectuais; ele se desespera; volta-se para o íntimo e foge do convívio social; perde as referências; revolta-se, mas sem redenção à vista; vive, mas se sente morto.
O Estatuto da Igualdade Racial, instituído pela lei 12.288/10, e agora em vigor, poderia ter resolvido o problema em definitivo, mas seus avanços tímidos revelam bem o quanto de racismo subsiste na sociedade brasileira. Felizmente, entre os méritos que se podem a ele emprestar, ao definir a desigualdade racial como matéria de interesse coletivo e de caráter difuso, cria mecanismo de maior eficácia e amplitude para a atuação do MP, que, seguramente, como já vem fazendo, dará novos contornos ao assunto, contribuindo para as mudanças que o sentimento de humanidade reclama na aplicação correta da lei.
Por: João Humberto Martorelli
Fonte: migalhas.com.br
Por: João Humberto Martorelli
Fonte: migalhas.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário